April 17, 2007

Uma ilha Terceira


Às vezes nem nos lembramos que temos ilhas portuguesas. Pensamos em ilhas e vogamos para as Caraíbas ou para algum paraíso minúsculo comprado, digamos, por Marlon Brando. E, no entanto, temos ilhas. E, que me perdoem os madeirenses, temos acima de tudo as ilhas dos Açores. Conheço apenas duas (São Miguel e Terceira), mas é mais que suficiente para perceber o misticismo poético a que se entregam subitamente os meus amigos açorianos no meio de uma conversa. As ilhas dos Açores têm uma característica quase única no conjunto nacional: são orgulhosamente autónomas nos seus brios e distintamente portuguesas na sua melancolia marítima com barra azul e nevoeiro. Estive duas vezes na Terceira e nunca me senti tão português. Também porque ser português é falar e escrever em português, e nisso nunca esqueço Vitorino Nemésio, que escreveu o glorioso Mau Tempo no Canal (que se passa sobretudo no Faial, mas também parcialmente na Terceira), o Corsário das Ilhas e a Sapateia Açoriana. Estive na casa abandonada das tias de Nemésio, onde há um busto do escritor. E lembrei-me de passagens dos "Poemas Ilhéus" (publicados na Colóquio-Letras em 1978): "Farto de ser ilhéu com leivas na cabeça / Tenho fumos das Furnas a servir-me de bafo; / Cada calheta ameaça-me de baixios, / Sou grumete nas toldas dos navios / E, enfim, uma desgraça de sinónimos de marear. / (...) Estou farto de ser o pretexto humano destas coisas / E quem ouve os sinos no nevoeiro e o boi berrar. / Dorido de me terem feito nascer numa pedra, /Peço licença, a quem tenha pena de mim, para chorar." Não creio que este sentimento de ilhéu se distinga no fundamental do sentimento de ser português: uma espécie de orgulho triste, de emparedamento cantante, de abandono vigiado. É por isso que me senti tão bem acolhido nos Açores, independentemente da efectiva simpatia das pessoas que me receberam. E lembro-me de estar na varanda do meu hotel, no porto da Praia da Vitória, e de dar comigo a pensar que vivi quase trinta anos numa rua chamada Praia da Vitória. Em Lisboa. A gente chega às ilhas e o que vê é verde e solidão. Mas bastam uns dias para começarmos a perceber este mundo onde mesmo aquilo que parece turístico (as furnas, os touros à corda, as baleias, as romarias) é antes do mais um modo de viver intensamente, umas vezes apenas para dentro, outras vezes numa espécie de exuberância triste. Não é justo dizer que conheço os Açores, quando estive apenas brevemente em duas ilhas. E mesmo essas duas ilhas, o que sei que não sejam generalidades toscas? Mas sei que em nenhum outro sítio em que tenha estado tão pouco tempo me senti tão dominado pelo espírito do lugar. Quase percebendo a melancolia benigna dos meus amigos açorianos, os que no meio de uma conversa têm saudades do futuro.
Na Terceira nasceu um dos três ou quatro maiores escritores portugueses do século passado: Vitorino Nemésio (1901-1978). Os Açores têm aliás uma forte tradição literária, de Antero de Quental (1842-1891) a Natália Correia (1923-1993).
Pedro Mexia, Edição do Diário de Notícias.

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